A matemática e a música têm funções muito
diferentes na sociedade. No entanto, estão mais intimamente relacionadas do que
geralmente se pensa. A música, com toda a sua paixão e emoção, também é baseada
em relações matemáticas. Noções como a de oitava, acorde, escala ou tonalidade
podem ser desmistificadas e compreendidas logicamente, usando a matemática.
A matemática também está relacionada com questões de
estética musical. Por exemplo, um músico experiente consegue ouvir um trecho
musical, observar a sua estrutura musical e acompanhá-la correctamente, mesmo
sem conhecer ou ter ensaiado previamente a melodia, por ser capaz de reconhecer
padrões e formas familiares. Este tipo de raciocínio assemelha-se muito ao que
acontece quando se estuda matemática, onde a identificação de relações e
padrões é parte essencial.
Uma das estruturas musicais que está intimamente
relacionada com a matemática, é a noção de escala musical. Uma escala musical é
uma sequência ordenada de tons pela frequência vibratória de sons, (normalmente
do som de frequência mais baixa para o de frequência mais alta), que consiste
na manutenção de determinados intervalos entre as suas notas. Vejamos então
como a matemática está envolvida na construção desta estrutura musical.
Conceitos importantes
Antes de falar sobre as escalas propriamente ditas,
é conveniente clarificar alguns conceitos, nomeadamente os conceitos de:
Som - onda (ou conjunto de ondas) que se propaga no
ar com uma certa frequência; para as que se situam na faixa de 20 a 20.000 Hz,
o ouvido humano é capaz de vibrar à mesma proporção, captando essa informação e
produzindo sensações neurais, às quais o ser humano dá o nome de som.
Nota musical - termo empregue para designar o elemento
mínimo de um som, formado por um único modo de vibração do ar. A cada nota
corresponde uma duração e está associada uma frequência.
Intervalo - uma diferença de tom entre duas notas;
denominam-se intervalos harmónicos se os dois tons soam simultaneamente e
intervalos melódicos se eles soam sucessivamente.
Acorde - é a escrita ou execução de duas ou mais
notas simultaneamente.
Vejamos agora algumas escalas
importantes em termos musicais e a sua relação com a matemática.
Escala Pitagórica
Pitágoras desenvolveu a primeira escala musical com
base matemática da história ocidental. Na Escola Pitagórica a Música era
considerada como estando ao mesmo nível da Aritmética, Geometria e Astronomia.
A Música era a ciência do som e da harmonia.
Os antigos gregos descobriram que, para uma nota de
uma determinada frequência só as notas cujas frequências eram múltiplos
inteiros da primeira poderiam ser convenientemente combinadas (consonantes).
Se, por exemplo, a nota de frequência 220 Hz era tocada, as notas com maior
consonância com a mesma seriam as de frequências 440 Hz, 660 Hz, 880 Hz, etc. e
seriam percebidas como versões mais agudas ou graves da mesma nota. A razão
mais importante entre frequências é, por isso, de 1:2, que no sistema de
notação musical ocidental é chamado de um intervalo de oitava (por existirem 8
notas, ou tons inteiros, entre as duas frequências). Sempre que a razão entre
frequências é de 1:2 estamos em presença de um intervalo de oitava. Outras
razões permitem construir outros intervalos os de quinta (2:3), quarta (3:4),
terceira maior (4:5) e terceira menor (5:6), todos importantes para a criação
dos acordes.
A diferença entre uma quinta e uma quarta era
definida como um tom inteiro, e resulta numa razão de 8:9.
A afinação de um intrumento pela escala pitagórica
define todas as notas e intervalos de uma escala musical a partir de uma série
de quintas com uma razão de 3:2. Assim sendo é, não só um sistema
matematicamente elegante mas também um dos mais simples de afinar.
Partindo do intervalo de oitava
dado pelas frequências genéricas fo e 2fo pode-se formar a escala pitagórica,
desde que se mantenha os intervalos (ou seja as razões numéricas) entre as
notas. As notas obtidas formam a chamada escala diatónica de sete notas que
conhecemos vulgarmente por Dó, Ré, Mi, Fá, Sol,
Lá, Si. Se calcularmos os intervalos entre todas as alturas da escala diatónica
teremos apenas dois valores: (9/8) e (256/243), chamados respectivamente de tom pitagórico diatónico e semitom pitagórico diatónico. Obtém-se assim uma escala com 7
notas diferentes como as da figura
Os estudos de
razões “harmónicas” e proporções eram a essência da música durante a época dos
pitagóricos. A partir da Idade Média, no entanto, com o desenvolvimento de
música mais complexa, observou-se que, embora as razões fossem “perfeitas”,
ocorriam problemas quando acordes particulares, diferentes tonalidades ou escalas
com mais notas eram utilizadas.
O problema
derivava da definição dos intervalos de terceira, quinta e oitava quando
definidos por números inteiros. Ao adicionar vários intervalos de terceira e
quinta sucessivamente a uma nota de base, nunca se consegue atingir novamente uma
oitava da nota de base. Quer isto dizer que adicionar tons inteiros definidos
pela razão 9:8 a uma nota de base de frequência fo, nunca
permite criar uma nova nota de frequência 2fo, 3fo,
4fo ou semelhantes.
Surgiu assim a
necessidade de um sistema de afinação alternativo e de outras definições de
escala.
Escala Bem Temperada e Igualmente
Temperada
Johann Sebastian Bach
introduziu, no século XVIII o sistema do “bom temperamento”. O temperamento envolve
o ajuste dos intervalos da escala pitagórica de tal forma que uma oitava era
dividida em intervalos que permitiam tocar em qualquer tonalidade e eliminar o
problema das notas nas oitavas não serem coincidentes. Inicialmente existiam
vários métodos de afinação “bem temperada”. O que sobreviveu até aos nossos
dias foi o sistema com uma
escala de doze semitons igualmente distribuidos pela oitava (escala igualmente temperada). O pai de Galileo, um
músico teórico, foi um dos primeiros a propor este sistema, no século XV, embora
este só tenha sido adoptado como referência no século XIX.
Nesta escala, um tom inteiro já
não é definido pela razão 9:8=1,125 mas por dois semitons (cada um expresso
como) obtendo o valor numérico de. Assim sendo, se chamamos i ao intervalo entre cada semitom da
escala temperada, um intervalo de quinta (7 semitons) é i7, um
intervalo de quarta (5 semitons) é i5, um intervalo de segunda maior
(2 semitons) é i2, e assim por diante. O intervalo de oitava (12
semitons), dado por i12, tem a relação de 2/1, que corresponde à
oitava pitagórica.
Pode-se calcular qualquer outro
intervalo da escala temperada usando-se a expressão in = 2 n/12,
onde n é o número de semitons contido no intervalo. Por exemplo, para calcular
a frequência de um Mi quinta acima (7 semitons) de um Lá de 440 Hz temos:
Fi = fo * 2 n/12 = 440 * 2 7/12 = 440 * 1.498 = 659,25 Hz
Foram propostas e existem
actualmente várias escalas temperadas. No entanto, a escala de doze semitons igualmente temperada é
a única escala igualmente temperada que contém os sete intervalos consonantes
com uma boa aproximação (cerca de 1% de variação em relação ao intervalo “puro”,
ver tabela) e contém mais intervalos consonantes que dissonantes. Por isso, é
provavelmente a melhor solução de compromisso de todas as escalas possíveis,
sendo essa a razão pela qual é a escala de referência no mundo ocidental e a
sua utilização é comum em todo o mundo.
Nota
|
Razão Intervalar
da Escala Pitagórica
|
Razão Intervalar
da Escala Igualmente Temperada
|
No de Semitons
|
Dó
|
1,000
|
1,000
|
0
|
Dó# Réb
|
1,054
|
1,059
|
1
|
Ré
|
1,125
|
1,122
|
2
|
Ré# Mib
|
1,185
|
1,189
|
3
|
Mi
|
1,266
|
1,260
|
4
|
Fá
|
1,333
|
1,335
|
5
|
Fá# Solb
|
1,405
|
1,414
|
6
|
Sol
|
1,500
|
1,498
|
7
|
Sol# Láb
|
1,580
|
1,587
|
8
|
Lá
|
1,688
|
1,682
|
9
|
Lá# Sib
|
1,778
|
1,782
|
10
|
Si
|
1,898
|
1,888
|
11
|
Dó
|
2,000
|
2,000
|
12
|
A principal questão
das escalas e sistemas de afinação temperados é que embora o ouvido humano prefira
os intervalos “puros” pitagóricos, uma escala temperada é necessária para a
execução de música mais complexa com acordes e instrumentação variada. De um
modo geral, os indivíduos preferem escalas musicais com muitos intervalos
consonantes (que “soam bem”). Não existe uma lista definitiva de intervalos
consonantes porque o conceito de consonância envolve um julgamento estético
subjectivo. O que é facto é que os músicos actuais têm que se adaptar ás
pequenas dissonâncias da escala temperada para afinar os seus instrumentos.
Quer isto dizer que
vivemos agora num mundo de escalas igualmente temperadas? Não propriamente.
Actualmente vivemos num mundo onde a música de Bach será tocada num instrumento
bem temperado, a música medieval executada utilizando a escala pitagórica e
Chopin num piano igualmente temperado. A tendência actual é para tentar
reproduzir, sempre que possível, a sonoridade da época em que a composição
musical foi escrita. Para tal o conhecimento e uso de uma afinação específica e das relações
matemáticas entre as notas aqui abordadas é fundamental.